Mês 1 — Cheia

Michele Flores
11 min readJun 19, 2021

Se eu parar de pensar no penhasco, ele desaparece? Se eu fechar os olhos e rezar para que ele não exista, ele desaparece? Não. Mas eu jamais iria pular. Racionalmente penso em cada parte do meu corpo que bateria contra as superfícies ortogonais ou pontiagudas da rocha, em qual barulho faria o impacto da primeira parte do meu corpo contra essa superfície exageradamente sólida. Por isso me encanta mirar o abismo, a solidez continuada. Não parece que o vento sorrateiro vai tirando pequenos grãos enquanto lambe as arestas desse abismo sólido.

Uma vez li que os principais fármacos do tratamento da depressão passam pelo controle da serotonina, mas alguns estudos farmacológicos estavam envolvendo o cortisol, mas ainda com muitos efeitos colaterais. O cortisol é o hormônio do estresse e, ao que parece — pois eu não vou conferir — seus níveis elevados podem ser sinal da depressão por vir ou instalada. Parece que os picos e quedas de uma pessoa depressiva também são diferentes.

Não sei a fórmula do cortisol ou da serotonina, mas é reconfortante pensar que todo esse fascínio por penhascos pode ser uma questão química disfuncional no meu cérebro. Como se existisse um “eu” imaculado que está com umas pecinhas defeituosas, que não estão funcionando direito. Uma coisa diferente de mim. Como esse vento sorrateiro que vai subtraindo grão a grão a solidez do penhasco, até que uma pequena fratura se transforme em um cânion. A serotonina indo embora, grão a grão, todos os dias. O vazio sendo ocupado por mais e mais golfadas de vento de cortisol. Cientificamente essa sentença tem uma série de incoerências. Mas preciso me fixar a alguma metáfora para continuar com medo de pular.

Para os meus amigos estou apenas tirando fotos. Ajusto a lente para focar no ponto mais alto, se houvesse uma casinha lá e eu pudesse morar sozinha até o fim da vida, talvez os vales e picos dessas substâncias entrassem em ressonância com a paisagem e, de repente, tudo estaria em harmonia novamente. Acho que a amplitude dos meus cumes e vales alargou muito desde a sua partida, alargaram muito para a minha idade, para a minha dimensão, não cabem mais nessa escala do corpo, é preciso medir em hectares, alqueires, milhas náuticas, e todas essas medidas que não sabemos o significado e usamos para poupar grandes números ao medir coisas que fogem ao alcance da vista.

Eu me lembro quando descobri como era amar. Estava no jardim de infância, o menino se chamava Víctor, sua pele era marrom, eu tinha aprendido essa cor há pouco tempo, e cuidava com carinho desse lápis. Sentávamos eu, ele e mais duas meninas. Eu gostava dele e não sei como começou, só sabia que gostava. Com quatro anos as coisas não tinham início nem fim, começavam como um sonho e desapareciam logo em seguida, sem que fosse questionada sua realidade absurda, como fazemos para despertar do sonho.

Víctor girou o lápis, disse que apontaria para a menina que gostava, e apontou para mim. Meu peito ficou esquisito, esquentou, como quando a mãe passava Vic para aliviar a tosse que chacoalhava o meu corpo desde que eu nasci. Eu senti o mundo sob os meus pés, o mundo estava, de fato, aos meus pés.

Eu não era a-menina-que-os-meninos-gostavam, e isso me dava uma distância segura dos fatos. Na minha foto da quadrilha, nessa pré-escola, estou com a cabeça baixa e meio escondida, rindo. Não tinha vestido de quadrilha, nem dinheiro pra isso, e já era uma escola pobre por si só. Minha mãe me vestiu um vestido jeans, meio preto e branco, simulando um xadrez, me colocou um chapéu verde, que eu achava feio. Era o que ela tinha, ela não conhecia aquilo de ‘fantasiar filho para quadrilha’, ela veio de um lugar duro da roça, sem fantasias ou aquele tipo de informação. O vestido “de quadrilha”, que era quando as pessoas se fantasiavam de pessoas da roça, já era o vestido de retalhos que ela ia pra roça, de tal modo que ela não poderia conceber a ideia da fantasia. Eu queria me esconder na foto, mas estava rindo, isso diz muito sobre mim hoje, me escondo no humor, na ironia, na piada, me escondo pois não tenho vestido pra festa da vida.

Mas o Victor girou o lápis para o meu lado. Como um sonho, não sei o desdobramento daquilo. Certamente não segurei sua mão. Mas na primeira série amei de novo, seu nome era André e sua pele era branca, de modo que, quando corria no recreio, suas veias saltavam nas têmporas, criando pequenos córregos azuis navegando na planície alva. Seu cabelo muito liso e cortado em cuia chacoalhava e voltava para o lugar quando ele pulava. Não faz o menor sentido, pois teríamos no máximo seis anos, mas achava que seu braço era forte quando íamos de camiseta, no dia da educação física. A visão da infância transcende à lógica, como os sonhos, que são.

No recreio, a gente brincava de pega-pega, o pique era o portão da escola. Uma vez corri para lá, corri do André, ele chegou bufando bravo e eu encostei a tempo, ele me olhou nos olhos com aquela fúria linda de não ter chegado à tempo. Gostaria que ele me pegasse e me chacoalhasse, mas ele não encostou em mim. Sabia que ele olhava mais para a outra menina mais-bonita-da-sala. Eu era coadjuvante. Entendi e assumi esse papel muito cedo, coadjuvante.

Sob uma certa óptica era confortável, pois eu sempre olhava os acontecimentos de fora, como se fosse um narrador-observador, não precisava me preocupar em agir como uma protagonista. Não tinha a responsabilidade de sustentar esse personagem belo e inatingível das cantigas de amor medievais. Era só aquela camponesa no fundo das pinturas, ocupando um espaço nos campos de trigo, enquanto as princesas posavam com seus cabelos lisos e sorrisos oblíquos. Eu me interessava muito pela vida da camponesa, tinha inveja de como ela conseguia acordar, ir para a sua roça, trabalhar e voltar calmamente, sem que fosse atravessada por esse vazio colossal que vez ou outra cisma em congelar meus passos. Queria a sorte de uma felicidade tranquila.

Segui essa trajetória do não-amor até te conhecer. Na verdade, até você me conhecer, pois eu era tão apagada que quase não percebi que você estava interessado em quem eu era. Era meio evasiva nas respostas, o que importava quem eu era ou de onde vinha? Por que você perguntava aquilo? Havia uma irritação no meu comportamento, como se você tivesse aberto meu casulo e eu ainda não estivesse pronta para sair. A verdade é que eu estava tão pronta que estava apodrecendo as asas lá dentro, tive a sorte de você me perceber.

Mas não tive a sorte de uma felicidade tranquila. Foi uma felicidade assustadora, intensa e arrebatadora. Estive em lugares que nunca alcancei novamente. Mas estou cansada de contar essa história, de ser sempre a versão dolorosa de algo que poderia ter sido.

“Você tá triste?”

“Um pouco.”

Respondo com voz engasgada. Segurando fortemente as lágrimas nos olhos, porque se chorar vou ter que explicar essa tristeza entorpecente. Isso seria desesperador, porque não consigo explicar essa tristeza nem para mim mesma. Já me acostumei a represar lágrimas nos olhos, quando elas vêm todas juntas, como uma náusea que não se pode conter, eu abro bem os olhos e olho para cima e para o lado, para que ninguém perceba. Até que elas voltem pelos seus canalículos e avisem às outras que não têm saída. Será qual o destino das lágrimas que a gente não chora? Desconfio que seja uma caixa d’água no peito, que vai se enchendo e pesando cada vez mais, desconfio que minha caixa esteja sempre transbordando e respirar é o exercício de emergir dessas águas profundas todas às vezes, para sobreviver em meio a um afogamento. E eu não sei nadar.

Por sorte bate um vento vindo do leste, aproveitando o alinhamento da serra, os contornos sólidos do penhasco, e seca um pouco das lágrimas que chegaram fora de hora. Um casal me vê com a câmera de melhor qualidade e me pede, meio tímido, para tirar uma foto, ao que me disponibilizo de prontidão. Ajusto a lente e coloco o olho naquele quadrado minúsculo onde enquadro a felicidade deles. Têm anéis de noivo, vão se casar. Aumento o zoom e percebo os traços quebrados da maquiagem da moça na ruga do sorriso dos seus olhos, como pequenas gretas de ressecamento quando a lama que seca após um dia de sol, formando figuras poligonais, guarda vazios entre si. Os vazios de onde a umidade saiu para formar aquele semblante da felicidade. Sinto uma angústia prévia pensando nessas gretas encharcadas pelas chuvas torrenciais de lágrimas que ainda podem correr por ali.

Me sinto como se estivesse me afogando permanentemente nessas lágrimas represadas. Como a sensação de estar bêbado e tentando ficar sóbrio no segundo seguinte, sem aceitar que ainda vai levar algum tempo. O mundo todo girando ao seu redor gera mais angústia que o normal. Você girando, em cima do mundo girando, no universo, (girando?), de tal modo que parece que tudo está assustadoramente estático. Você morreu. Isso é tão estático que rasgaria a carne do meu ventre com a simples menção da sua existência. Não sei porque tudo não se rasgou naquele instante. Ao meu entender: tudo evaporou dentro de mim. Só existem os hologramas dos órgãos representando um papel de função vital.

Afogamento. Uma vez quase me afoguei na infância, estava em uma piscina em um clube e tentei nadar sozinha, de repente me vi lutando contra as águas, não havia nada sólido em que se prender, o mundo perdeu sua forma usual naquele instante e senti a água entrar ao puxar o ar. Todo o vazio que deveria naturalmente ser ocupado pelo oxigênio estava sendo invadindo por uma substância densa que não flutua. Preenchendo os canais que posteriormente eu chamaria de alvéolos. Por sorte pude chamar, por muita sorte. Se os alvéolos estivessem saturados de água eu sequer aprenderia que eles existem, também não aprenderia que você morreu. Seria isso tão ruim assim?

Há uma criança dentro de mim. Eu voltei nesse lugar, onde foi nosso primeiro encontro com as montanhas, para me despedir formalmente da tristeza. Não posso mais me afogar nela. O filho não é seu. Se eu me afogar, sinto como se ele fosse se afogar dentro de mim. Ainda não existe um feto, por isso vim me despedir. O feto não pode absorver toda essa angústia do meu afogamento, por isso vim me despedir. Você precisa ir embora da minha mente para que eu possa nascer como mãe. Meu filho não vai ter sua cor e eu sinto tanto por isso. Queria que ele tivesse seu cheiro. Seu tato macio. Será um filho da cor deste homem que não o queria. Você queria tanto. Mas ao contrário do que insistimos em significar, não há grandes sentidos por trás dos véus da vida, além de se manter assustadoramente sobrevivendo. Por mais que feche meus olhos nos momentos em que o desespero me invade, e pressione minhas têmporas tentando cortar o fluxo sanguíneo para o cérebro por alguns segundos, para sentir algo ébrio que me tire da realidade, quando abro os olhos você não está lá. Eu converso com você na maior parte do tempo, com seu espírito, com a sua invenção na minha cabeça, mas quem está lá é ele.

“Você está triste?”

“Um pouco.”

Mas agora vai embora, com penhasco, com vento, com tudo que estiver ao meu alcance. Há uma criança dentro de mim e eu a amo. Por mais que a matéria externa à cápsula desse amor seja uma tristeza sem fim, sejam lágrimas abundantes que já chorei por tantas vez que parece que brotam de uma nascente que não conhece a estação da seca. Nunca mais senti prazer, e essa criança também não nasceu do prazer, isso me deixa triste e temerosa de que ela tenha como constituinte, do seu pequeno corpo que ainda não existe, essa matéria densa que não me permite nadar.

Minha mãe sempre me contava uma história de uma família que morava na roça onde ela nasceu e eu vivi meus primeiros anos. Havia uma família, pai, mãe e filha pequena. A mãe foi fazer a unha e descuidou da filha por alguns instantes, poucos instantes. Havia uma piscina na casa. Nesse ponto eu penso na alegria do casal em planejar uma piscina, algo tão sofisticado em uma cidade tão simples, deve ter sido tão caro e uma realização tão grande para eles. Imagino eles indo dormir, transando, descansando do sexo um do lado do outro e falando, “agora nós temos uma piscina!”, tão felizes. Mas quando a mãe se deu conta, foram procurar a menina, e ela estava afogada na piscina, talvez tivesse dois ou três anos.

Minha mãe sempre me contou essa história, desde criança. Minha mãe é muito amorosa, não tem nem um único traço de maldade no seu coração. Mas ela sempre me contou essa história. Sempre. Nos mínimos detalhes que sabia. Não sei. A tragédia contada para minha mãe residia nela para sempre, como uma muda de castanheira, que, cortada, renasce daquele ramo leitoso, insistente. Nunca morre, a não ser que seja envenenado. Minha mãe viveu um luto de um marido vivo, guardou-se para a sua chegada como uma festa, mas se transformou em um velório, de longos anos de abuso, humilhação e tristeza. Talvez por isso ela, que tanto me amava, me contava histórias tão tristes. Talvez fosse a forma de desaguar sua represa de lágrimas de maneira indireta. Eu não tenho grandes respostas sobre isso.

Mas há um projeto de vida dentro de mim. Ainda não pesquisei em que ponto está nesse primeiro mês, se é só um agrupamento de células, se há sistema nervoso. Não quero pesquisar para não me sentir culpada de ainda não ter expurgado a tristeza. Com medo de que haja sim uma química e que eu possa estar enviando cortisol a mais ou serotonina de menos para o meu filho ou para minha filha. Quem sabe? Isso é um informação que é tudo, e é nada, a depender da escala em que estamos nos baseando. Na escala da história da Terra, não é nada, na escala da vida dele ou dela, será tudo.

Eu sinto que estou me afogando, mas meu filho não, por algumas questões biológicas ele consegue ficar imerso em líquido amniótico sem se afogar, pois um cordão o liga a mim. Onde ele termina e eu começo? Ou é tudo uma coisa só. Queria muito falar com você meu filho, mas ainda é muito cedo. Já nasci como mãe, não tem mais volta e já nasci como uma mãe falha e que pede desculpas. Não vou ser uma mãe linda, que você mostrará as fotos para os amigos na vida adulta, contando sobre o quanto eu era bela. Eu tenho espinhas, acredita? Já passei da idade, mas o ajuste do fim da pílula ainda não se acertou, minha pele do rosto em alguns pontos é oleosa, em outros está descamando, como um peixe. Espero que a sua seja um pouco melhor.

Mas eu te prometo que não farei como a Sylvia. Estarei aqui o quanto você estiver. Eu te amo, e é curioso, pois você ainda nem deve ter o tal sistema nervoso. É puro instinto, eu sou instintiva, apesar de muito racional, apesar de muito subjetiva, você vai entender. Essas peças do dominó que me compõem estão sempre prontas para desmoronar, mas se ajustam em uma simetria perfeita.

Aqui de cima vejo a paisagem de, ao menos, três cidades. Daqui de cima vi um balão tão clichê em forma de coração subir no céu, foi o dia que vi o quanto amava aquele homem que não é seu pai. Não sei se vou te contar essa história, não quero que você seja herdeiro dessa tristeza. Você já saberá só pelas conversas de cordão que teceremos? Espero que não. Seu pai tem um ótimo coração. É uma pessoa boa. Eu realmente gosto dele, vou tirar umas fotos hoje, para te mostrar algum dia. Ele não presta muita atenção em si mesmo, veste qualquer camisa que não tem a ver com a bermuda e que pode estar amarrotada, mas é tão solícito quando alguém pede ajuda, sabe? Acho que desse jeito dele, sem muito léxico, mas com ação, ele vai saber te amar. O que faltar em palavras, eu completo. A cor dele também é bonita, talvez você terá cabelos castanhos encaracolados como o meu, meio lambidos na primeira infância, como o dele, que notoriamente eu vou cortar em cuia.

Acho que estou finalmente deixando a tristeza ir embora. Não estou mais me afogando. Como você milagrosamente não se afoga. Estou cheia, meu filho. Estou cheia, como um rio. Cheia de você.

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Michele Flores

Nasci em contagem, 1994, mas queria que fosse uma cidade com vista para o mar. Estou geóloga, formada pela UFMG. Escritora em (eterna) formação.