O quão nebulosa pode ser a sobreposição de memórias? #Expedição: nebulosa

Michele Flores
9 min readJun 25, 2023

O quão nebulosa pode ser a sobreposição de memórias?

Quando comecei a ‘Expedição’ de Marília, estava na cafeteria que vou todo sábado de manhã. Levo meus livros para tomar café e sentir o cheiro do pão de queijo quando sai do forno da Juliana.

Quando cheguei na ‘parte 1: o arrastão’ ouvi gritos lá fora de ‘ladrão!’, e o alvoroço seguinte. Pensei, aqui nesta página começa um arrastão e lá fora começa algo assim também.

Continuei a leitura e era um arrastão de pesca e conforme as pessoas debatiam lá fora, percebi que também não havia roubo algum, apenas algum morador de rua que esbarrou em uma transeunte que olhava o celular e ela achou que estava sendo roubada.

A palavra: arrastão, dentro e fora da página, mudou de cara e havia algo muito importante nisso. Percebi que não poderia continuar. Era um livro sobre sobreposições de coisas que se parecem, mas são diferentes, e a semelhança se revela a partir da visada, era uma livro de semelhanças sobrepostas a partir do tempo e da travessia do tempo. Onde o ângulo importa. Não poderia ler desavisada.

Retomei o ‘Transit’ da Rachel Cusk que estava em andamento e deixei a ‘Expedição’ de Marília para depois, elas se cruzaram na bolsa, como duas conhecidas que não lembram o nome uma da outra, mas consentem com a cabeça, sobre o quase-anonimato mútuo.

Hoje terminei o ‘Transit’, na mesma cafeteria, e ele cruzou com a ‘Expedição’ que saía da bolsa. Comecei novamente.

Em certo ponto percebi que, em uma conversa de Marília com Ana Martins Marques, ela recitava um poema de uma conversa, com um amigo que não lhe prestava a interlocução, pois havia morrido. Eu senti ali no poema, como logo no começo da Expedição, que tratava-se de um exercício de interlocução, que a morte não nos permite.

Não sabia quem era o amigo, mas um dia em sua rede social ela fez menção ao Victor Heringer. Eu lembrei disso quando já havia tomado o café, comido o pão de queijo e atravessado a rua, estava na Quixote verificando se já havia chegado a tradução que ela fez da Sylvia Plath.

Percebi que ela falava do Victor no poema da conversa. Notei também que havia um poema com este nome no livro ao final de dez atos, e meu estômago esfriou. Lembrei do arrastão, mas a esquina agora não era nebulosa como naquele dia, estava ensolarada e as pessoas bebiam chope, alegres.

Guardei Transit e a Expedição, lado a lado, como numa edição bilíngue, com um leve sobressalto de quando chegaria na ‘conversa’. Eu não conhecia o Victor, e ainda não li sua obra, mas quando ele morreu, eu acompanhava outros autores que postaram tão consternados sua perda. Eu vi sua foto, alvo, jovem, e senti uma dor nos textos que seus amigos autores escreveram, como se eu também o conhecesse.

Lembrei-me de um texto dele que havia lido, sobre escrever, em que ele apresenta uma tabela com as substâncias recomendadas e com a frequência da escrita. Eu achava que havia lido antes dele morrer, mas na verdade foi depois, isto também é uma sobreposição.

Na Quixote eu me lembrei, com o meu atual companheiro, da perda do meu primeiro companheiro dois anos antes do Victor e de que o meu companheiro que morreu escrevia poemas e guardava em uma pasta, que está em algum HD que não me lembro qual. O meu companheiro atual me disse que pela forma dos meus poemas sobre ele, sobre como o amei, ele também o amava sem tê-lo conhecido. Eu disse que pela forma como Marília falava do Victor eu também o amava, por meio dela, como os mapas sobrepostos. Como se Belo Horizonte fosse agora mais um mapa sobreposto nessa sucessão de camadas.

Eu cheguei em casa e respirei fundo, entrei nos atos finais, até atingir a ‘conversa’, era o meu velório pessoal do Victor, agora eu conseguiria dobrar o mapa. Entrei na ‘História Natural’ que era uma parte final e também o começo, como se as coisas começassem a se conectar, como as pistas: ‘quanto tempo dura o presente’?

Em certo ponto é citado que ‘como os girafas são caladas / a música fica aprisionada dentro da cabeça dentro da cabeça das girafas / a música girando e do lado de fora / silêncio’. Eu poderia respirar agora, pensando na alta e sonora cabeça das girafas, mas tocou o interfone e por um segundo eu pensei, será que este som está dentro da minha cabeça? Mas tocou novamente e meu companheiro disse ‘você pode atender?’. Eu percebi que estava imersa na expedição e agora só poderia ir até o fim.

Eu saí rumo à portaria e uma nesga de Sol atravessava a lateral de um prédio em construção. Na primeira vez que comecei a ‘Expedição’ havia menos andares construídos, mas agora os raios custavam mais a atravessar pois ele avançava ainda mais vertical. Pensei nas peças da obra ‘echo’ que Marília viu, eu tive muita dúvida quando ela citou a opção de ver de cima. Mas o sol, nesse ângulo, via o prédio em construção de cima, e eu o via de baixo, em um ângulo em que agora eu entendia, que [isto aqui é uma expedição] e precisava do personagem ‘tempo’ para eu entender certos atos.

Na ‘História Natural’ os meus marcadores verde neón acabaram e comecei a usar um tom verde mais escuro, são muito similares, mas, quando sobrepostos, é clara a diferença. Assim como os atos e a história natural. Achei que isto era também um palimpsesto. Quando voltei da portaria fui pegar o ‘Expedição’ e me deparei quase pegando o ‘Holograma’ que também é azul, e estava por perto, mas de um azul mais claro, mais vivo. É o próximo. Pareciam iguais de relance, mas são muito diferentes. Ou não, a depender do ângulo em que se mira a morte.

Cheguei ao poema em que falava dos cadáveres da lagarta e me dei conta de que eu havia escrito um poema sobre cadáveres de lagartas também uma semana antes de ler este, mas as minhas eram pretas com listras verdes e as de Marília com riscos amarelos. As minhas não fui em quem matou, eram um paralelo com o cadáver de meu primeiro companheiro. A visão daquele interior que nos adoece. As de Marília, eu soube, transformavam-se em mariposas.

Quando cheguei nos ‘dias contados’, verifiquei a imagem do timer, a absoluta imagem de “o tempo que temos / se estamos atentos / será sempre exato”. E a imagem da mulher que ficou, e a imagem do homem que partiu. Me peguei na imagem do meu primeiro companheiro que morreu e cravou na minha aliança “juntos sobre a terra”, pois o ourives não entendeu que era para escrever ‘(T)terra’ assim mesmo, como meu companheiro pediu, como sendo o planeta e o chão, uma sobreposição. Ficamos juntos sobre o chão. No anel dele eu escrevi ‘saudade é mar’ e após a morte dele me dei conta de que cravei isso no anel, mas não sei nadar. Então o verso ‘por quanto tempo você aguentaria ficar debaixo d’água?’ de Marília, para se referir aos dias contados, fez muito sentido para mim. Quando o meu primeiro companheiro se foi, eu entendi o que era me afogar, no ar, e que o tempo era mesmo exato. Nisto também havia a sobreposição de Marília olhando de viés pelo verso.

Então descemos para o centro da terra. Chegando nessa parte final do livro algo me ocorreu. Sou geóloga, mas era claro que não era o verdadeiro centro da terra, a não ser que fosse. Até que li sobre a imagem das raízes rompendo as calçadas e também havia escrito sobre isso no meu poema das lagartas uma semana antes. O quão nebulosa é a sobreposição das memórias? A imagem das raízes levando o sol para dentro da terra, assim com t minúsculo, me fez pensar em um mecanismo poético-geológico que permitisse às raízes tornar o manto e até o núcleo mais quentes, como de fato são, por meio da terra, solo, sobre a qual estamos juntos.

‘seria possível escavando as raízes

transformar o passado?’

Nessa parte sinto que estamos juntos, eu, Marília, nossos mortos, nossos vivos. Com o sol do centro da terra escavada, desço ao centro de mim, percebo que ‘nós também podemos afundar’, e isso é necessário para emergir novamente. ‘ lembro dela falando comigo / andando ao meu lado a voz dela / e frases precisas que insistem em voltar.’ As frases ‘precisas’, penso que são também as ‘necessárias’ para que possamos dar contorno às coisas incontornáveis, como a morte. O vocabulário formal, objetivo.

Nunca escrevi uma resenha sobre um livro ou senti um ímpeto de ir tão longe. Mas acho que escavei no passado de Marília que é também o presente, pois há o improviso necessário, a minha possibilidade ‘para escrever um canto de luto’.

Encontrei nos seus mapas sobrepostos esta interlocução impossível para algo sedimentado, como raízes que atropelam calçadas. Penso em descer ao mundo dos mortos, e como ela fala de Hades e Averno, mas penso também, como geológa, no Averno como cratera, o Averno de Louise Glück, o Lago Averno que é uma cratera vulcânica no oeste da Itália, e em como os vulcões trazem o sol para fora da terra novamente. Quero contar à minha amiga vulcanóloga, Maria, esta epifania. Pensando se ela pintaria uma aquarela com um vulcão que carrega o sol em si. Ela conhece muito de vulcões, mas está começando na aquarela, penso se construiria esta cor com olhos geológicos ou olhos poéticos, se há cor para isso no mundo. Para o movimento ‘de subida / que é o movimento de anábasis’.

Fixei minha mente na memória das raízes da figueira de Marília, subindo pelas ruas em São Paulo por não conseguirem penetrar aquela terra com suas fibras ópticas, e no lençol de areia da rua tutoia. Pensei no lençol de areia como uma memória do lençol freático que não passaria mais ali. Não sei geologicamente se havia um lençol freático passando raso por ali, na rua tutoia. Mas pensei na imagem poética da seca de uma rua que hospedou um porão da ditadura. As raízes recebendo aquilo com sua memória por ‘sismos e estremecimentos’.

Eu não sabia bem como terminar isto que não é um livro, mas como li o livro. Durante todo o dia dessa leitura, alguma coisa me incomodava a garganta, um choro querendo sair como uma elegia inversa. Como se as raízes trouxessem à tona um novo passado possível. Algo quente e vermelho. Meu companheiro, que me trouxe novamente à superfície, enquanto leio os últimos versos, me faz seu carinho curioso: ele passa as unhas sobre minha perna e coloca a mão inteira por cima, para que eu sinta o calor por onde a unha passou, ou seja, na sobreposição da memória do caminho das unhas com o calor de sua mão. Pois é assim, com o calor que retorna, como magma, que consigo terminar este livro, Marília pisca e me diz, ‘pode ir / o fim aqui é um / sim’.

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Michele Flores

Nasci em contagem, 1994, mas queria que fosse uma cidade com vista para o mar. Estou geóloga, formada pela UFMG. Escritora em (eterna) formação.