Pássaro-Preto-Pintado

Michele Flores
11 min readJun 7, 2021

É muito difícil escrever uma história que não seja a sua própria história. O dia que percebi isso senti uma sensação inominável entre calma, paz e pertencimento, pois sempre achei que minha história não era a que deveria ser contada, não era a legítima, não se passava em outros países ou em lugares mais dignos do meu país. Meu sobrenome nunca fora questionado na escola particular onde tive bolsa, não era como os sobrenomes cheios de consoantes ou fonemas estranhos à nossa língua que denotavam ascendência europeia. Na minha família não há árvores genealógicas, nem do passado e nem do futuro. Ninguém sabe como os nossos antepassados chegaram onde chegaram, e nem para onde irão nossos sucessores. Toda essa ausência de narrativas que não me deram peças para montar minha história me fazia acreditar que minha história não poderia ser contada.

Essa era uma certeza tamanha, que eu não havia questionado até então o vazio que havia dentro de mim, um vazio tão denso que me levantar da cama exigia um esforço hercúleo, realizar as atividades básicas do trabalho era tão oneroso e demorado que eu me achava a pessoa menos capaz para aquela função. Um vazio que era sempre como carregar uma bola de boliche no diafragma, mas como ela sempre esteve lá, já não percebia seu peso como algo diferente ou algo que devesse ser observado. Foi só quando li outra história, de outra pessoa que também não achava a própria história legítima e que também carregava esse vazio, que percebi que havia uma outra vida possível.

Quando li e estava perto de um poço cristalino, fazia um pouco de frio que aquecia minha pele com cuidado, ainda molhada da água gelada desse poço, foi que tive a sensação inominável. Os raios do sol atravessavam a folhagem das plantas do cerrado que margeavam o poço, não era um bosque europeu, uma floresta de coníferas, uma tundra, era o meu cerrado, o bioma com o qual mais me identifico, pois é nele que minha história foi construída. Havia uma certeza retumbante em tudo aquilo. Como se eu tivesse depositado por alguns segundos a bola de boliche no chão, como as senhoras do meu bairro que depositavam as sacolas no chão no meio do morro da nossa rua e paravam para respirar, sua fronte ensopada de suor, os cabelos sempre presos, algum óculos de lentes grossas, e aqueles breves segundos sem as sacolas nos braços. Uma liberdade muito semelhante à epifania de ser dona do próprio alívio por um breve momento. Minha mãe me ensinava a carregar as sacolas dessas senhoras quando as encontrasse, hoje todas elas já estão mortas e não carregam mais sacolas.

Percebo isso hoje muito tempo depois, enquanto observo os paredões de pedra que aprendi a chamar de quartzito, unidos na estrutura sólida e imensa, compostos por infinitos grãos de quartzo, cuja lei de proporção mineral é um átomo de silício para dois átomos de oxigênio. Foi assim que eu aprendi, e toda a certeza que carrego de como essa serra se estrutura no espaço está baseada nessa lei invisível, pois nunca vi os átomos para além dos grãos visíveis. Mas é essa certeza que estrutura meu conhecimento sobre o assunto. A serra, por outro lado, é indiferente às leis. De manhã está com sombra, vento e neblina, à tarde o sol cai sobre ela, gerando um tom alaranjado e calmo sobre os pastos, capins-dourados, sempre-vivas. A serra se basta por si só, eu senti que eu me bastava naquele instante também, como grandes paredões de quartzito na luz do sol da tarde. De repente eu gostava da minha pele contra aquela luz, do meu cabelo, das minhas olheiras, da textura fibrosa das minhas cicatrizes. As fraturas que cortam a serra também são a serra ninguém diz: há a Serra do Espinhaço composta por quartzitos e fraturas, há apenas a serra, incólume. Era assim que eu estava, nem no lado ruim, nem no bom, no lado suficiente, como se eu estivesse sólida há milhões de anos.

Então eu percebi, quando consegui depositar a bola de boliche no chão por alguns segundos, que aquela sensação de alívio era também a sensação de não se odiar. Perceba que não disse: a sensação de se amar, disse exatamente isso, a sensação de não se odiar. Eu aprendi a me odiar muito cedo, tão cedo quanto a carregar a bola de boliche, então não conhecia outra coisa. Odiava minhas olheiras, pois me lembravam das olheiras do meu pai e de sua família, e eu deveria odiar aquilo que era vício e miséria, pessoas que estavam sempre desmoronando, muitos dos meus parentes dessa família tem problemas de dicção, não são acostumados a falar muito, não são acostumados a falar nada de si próprios, falam pouco, não pronunciam alguns fonemas e não usam palavras gentis, foram semi alfabetizados apenas em palavras duras e rudes, suas mães apenas gritavam cansadas seus nomes, os repreendendo.

Meu pai também se odiava e se maltratava, por isso me maltratava também, de modo que eu me odiava. Mas ele me amava, só que se odiava tanto, que eu não percebia a parte do amor, e por isso eu também não conhecia a parte do amor próprio. Só quando meu pai parou recentemente de se odiar que me foi permitido experimentar não me odiar também. Então eu amei minhas olheiras de repente, eram como grandes enseadas onde minhas lágrimas se depositavam como lagos, ou como poços de cachoeiras. Se não fossem esses grandes buracos vazios, como poderíamos nos refrescar? Mas ainda sim eu não sei nadar, talvez pois a bola de boliche aumente muito minha densidade, como o mercúrio, posso me desfazer dela por algum tempo, mas compõe, em alguma medida, a minha natureza.

Eu também não odiei mais esse peso que eu carrego, eu tive compaixão dele e de mim por tê-lo carregado com tanta força por tanto tempo, como os feixes de lenha que minha mãe carregou, e minha vó, e minha bisavó. Quando criança, minha mãe me ensinou a subir o morro da nossa casa equilibrando sacos na cabeça, ela carregava perfeitamente bem sem deixar cair. Para mim, era normal mulheres carregando peso, eu sempre fui forte, minha mãe carregava sacolas por longas distâncias do supermercado até em casa, mas antes disso ela carregava os feixes de lenha por quilômetros e quilômetros. Nossa cabeça é grande, das pessoas da família dela, eu também odiava isso e tenho vergonha de provar chapéus, pois nunca cabem. Mas naquele momento de epifania eu também não odiava o tamanho da minha cabeça e do rosto redondo nas fotos, é grande para que possamos equilibrar todo esse peso que precisamos carregar diariamente. Senti um amor imenso por todas as outras mulheres do meu sangue que carregaram feixes de lenha, isso não era feliz, com certeza, mas imaginei uma fila indiana, nós todas carregando o peso do mundo amarrado por trapos, na cabeça.

Então, caminhando pela crista da Serra do Espinhaço naquela localidade, onde ventava muito forte e os campos eram cobertos de belíssimas sempre-vivas, cujo nome já é por si só de uma beleza aterradora, avistei um passarinho pousado em uma haste de capim dourado. Um pássaro preto com partes amarelas, o peito amarelo e a parte de trás das asas, ele estava pousado indiferente ao vento, não se encolhia para se aquecer, simplesmente porque não era a hora. O seu instinto lhe dizia que se encolher era algo a se fazer quando o sol se punha, na hora absoluta de dormir. Era assim que enxergava o conhecimento puramente empírico dos meus pais, acumulado das necessidades e experiências.

Eu estudei exaustivamente porque odiava também aquele conhecimento, mas eu não sabia que odiava em momento algum, apenas achava que o conhecimento certo era o que aprendia por meio da cultura escrita, o resto era ignorância. Eu escrevia os orçamentos do meu pai desde criança, pois ele não sabia escrever corretamente os fonemas, apenas intuía e colocava no papel. Ele odiava não saber, mas o ódio era a vergonha de alguém ler o escrito errado, então eu escrevia com letra grande e bonita. Mas o meu pai construía o que ele quisesse com a lista de materiais que ele não sabia escrever, eu demorei muito a entender que isso era conhecimento, era muito conhecimento e eu não deveria ter me distanciado desse conhecimento, deveria tê-lo aprendido, tê-lo devorado, com a mesma força que devorei o conhecimento escrito. Mas isso, eu acho que era porque esse conhecimento era disponível e fácil, e eu aprendi muito cedo que o conhecimento escrito não era acessível nem fácil, quando eu pudesse acessá-lo deveria devorá-lo com todas as forças, de tal modo que eu fosse reconhecida por ele, e que compensasse todo o resto que eu odiava em mim.

O nome Serra do Espinhaço eu aprendi na cultura escrita, o tipo do passarinho não, mas agora eu amava o conhecimento do meu pai e tirei uma foto para que ele me explicasse qual passarinho era. Ele reconhece e ama seu conhecimento quando é questionado, ele disse,

“esse é o Pássaro-Preto-Pintado ou então o Sofreu, mas ele tá mais pro Pássaro-Preto porque o Sofreu é meio esvermelhado, isso é um Pássaro-Preto de duas cor. Tem o Pássaro-Preto preto normal e esse é de duas cor”.

Eu não quis corrigir nada do que ele disse, pois agora para mim nada está errado, é até muito bonito o que não está adequado à linguagem formal. Eu pesquisei na internet e vi que o nome mais usual é “Pássaro-Preto-Soldado”, contei para o meu pai e ele disse,

“é, eu esqueci de falar com cê, o pessoal conhece ele como Pássaro-Preto-Soldado, que ês fala, que ele é pintado né? De preto e amarelo”.

E nisso o conhecimento do meu pai ganhou uma dimensão maior e recente que eu então percebi, a forma como “eles” falam e a forma como “a gente” fala. Eu comecei a sustentar isso como uma resistência simbólica, nós falamos “cará”, muitos outros falam “inhame”, nós falamos “bodoque”, outros “estilingue”, minha mãe sempre falou “blusa de fri” e minha vó “partó”, muitos anos depois eu aprendi a chamar de “agasalho”. No começo, quando eu ainda não amava esse conhecimento, me esforçava para me alfabetizar nessa outra língua dessa outra história legítima, hoje eu falo insistentemente na nossa língua, os outros podem perguntar se tiverem dúvida.

Essas curtas epifanias duram apenas alguns segundos, mas escrever todos os seus desdobramentos talvez me permita aumentar sua duração ou frequência de ocorrência. Poder não odiar o meu corpo e todas as particularidades que compõem o que chamo de “eu” é mesmo como depositar as sacolas no chão e deixar que o vento toque a minha testa suada e cansada, um pouco. Eu também não odeio essa bola pesada que eu carrego, foi por causa dela que comecei a escrever tudo, pois não conseguia falar. Sentia ódio de tanta coisa, que não passava na garganta. Queria falar muita coisa com meu pai e não conseguia, então escrevia cartas. Se ele soubesse escrever talvez tivesse respondido na época, hoje ele consegue responder de outras formas, eu também me alfabetizei na sua linguagem, andei a maior parte do caminho até ele, naquela imensa estrada que nos distanciava.

Eu não odeio a minha tristeza, não sei se ela é uma doença, mas eu consigo olhar para ela como algo que não sou eu, algo que está comigo e é também importante em muitos aspectos. Se minha tristeza fosse tirada por completo, o que sobraria talvez não fosse o que chamo de “eu”. Minha tristeza também me fez procurar o refúgio das outras histórias, graças a ela a literatura é algo que eu amo. Eu acolho minha tristeza, com exatidão, não é um sentimento bom ou ruim, é um sentimento de tranquilidade ao olhar para ela. Estou consciente dela, e quanto mais consciência eu adquiro dela, menos eu vou me odiar, até que talvez eu possa me amar.

Eu me emociono facilmente com a delicadeza das flores que nascem em meio a esses terrenos rasos e de areia, tão pouco atraentes à beleza, tão pouco permissivos à vida. As flores nesses terrenos são um espasmo na lógica da beleza. Eu não vejo a beleza em mim, quando olho a lógica nefasta da beleza, que me atravessa todos os dias desde que nasci, uma beleza com muitas regras, mas nesses momentos de epifania é como se encontrasse em mim essas flores esparsas e coloridas, lutando para serem enxergadas por abelhas polinizadoras em meio aos campos secos. De repente, eu amo o dorso da minha mão, eu amo as palavras que me surgem tão bem encaixadas na cabeça, eu amo a textura da pele da minha panturrilha. Isso é realmente muito rápido e escrever é como fotografar essas flores e gritar para mim mesma: olha! elas nasceram! é possível!

É tão, mas tão possível que chega a doer, dói em todos os meus ossos, perceber em pequenos segundos que é possível encontrar o belo em mim, sempre vi o belo do lado de fora e fui gentil com o belo nos outros. O belo em mim é como quando o avião decola e eu morro de medo que, ao perder a segurança do chão, ele possa simplesmente perder a força e cair de bico. Achar o belo em mim dá tanto medo, que parece que nem vale a pena decolar para buscar. Mas não há outro modo que não seja uma decolagem ou um pouso forçado. É preciso acelerar o coração e segurar o braço da poltrona.

Para que alguém me ame ou para que eu me ame é imprescindível compreender o lugar dessa bola pesada que eu carrego e saber depositá-la ou me ajudar a depositá-la no chão de vez em quando. É preciso estar muito atento, se for outra pessoa, e preciso estar muito atenta, se for eu mesma. Pois, na maioria das vezes, estou cansada e só quero dormir, com bola e tudo. Preciso reunir forças para conseguir deixar que o vento e os raios de sol me toquem e eu esteja leve o suficiente para amar toda a minha superfície banhada por eles.

Por último, eu odeio que me procurem no texto, que procurem a minha história ou da minha família e que achem tudo isso bonito e não entendam o quão duro foi e o quão duro é. A etimologia do meu nome não existe, não para mim. Meus pais, que não amavam seu conhecimento ainda, puseram o nome de uma atriz norte-americana que em nada se parece comigo. Mas eu acolho meu nome. O meu sobrenome eu amo, aprendi isso bem mais tarde também, quando já não queria os sobrenomes europeus dos meus colegas. O meu nome queria que fosse algo do tupi, como o som de uma madeira oca, que significasse “flor no meio das pedras”, não sei se essa palavra existe no tupi. Mas eu amo a ideia. O que importa é o texto, apenas, é como ele te lê. Os bons livros, que me causam epifanias, não sou eu quem os leio, são eles que me lêem. Eu os amo e os guardo como se fossem meus parentes próximos, íntimos. Não sei como concluir esse texto e nem a qual gênero ele pertence, mas eu o amo, por conseguir descrever nele um pouco do meu ódio, sem ressentimentos. É como começar a fazer as pazes com ele. Como tudo ao redor, as serras, as flores, o Pássaro-Preto-Pintado, nada disso que se revolve dentro de mim pode ser compreendido sob uma leitura estática, como a do conhecimento escrito. Apenas o conhecimento empírico, da necessidade e reação à necessidade podem satisfazer a compreensão da natureza humana.

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Michele Flores

Nasci em contagem, 1994, mas queria que fosse uma cidade com vista para o mar. Estou geóloga, formada pela UFMG. Escritora em (eterna) formação.