TERRA FIRME

Michele Flores
8 min readMar 1, 2023

Conheci Belo Horizonte pela porta dos fundos, pelo elevador de serviço onde chegam os trabalhadores antes mesmo dos primeiros raios de Sol, onde as ruas dos povos indígenas atravessam como flechas a certeza reta do engenheiro Olegário Maciel. Ônibus vermelhos, pela tinta e pela poeira da região metropolitana que carregam, trazem tropas e tropas de mão-de-obra, com as forças e braços que seguraram por mais de hora as hastes de ferro dos ônibus, cruzando a avenida Amazonas, como os braços suados que se atravancavam na floresta homônima até Serra Pelada. O que vem são braços, rijos, gordos, em mangas de camisa, os olhos baixos ou mesmo sonolentos por vezes escapam às órbitas, como satélites perdidos, em descuidados cochilos de pé. Nos balcões das lanchonetes, mãos vêm e vão levando e trazendo pingados, trocados, pão na chapa, moedas, numa dança de dedos e ilusionismo, como se a garçonete fosse ela própria um boneco de ventríloquo, controlado por fios pelo dono do estabelecimento que certamente mora bem loge daquela região de acesso à cidade. Nos cantos das portas de correr, que rangem como que torturadas no seu exercício diário de subir e descer, ratos indiferentes ao movimento dos visitantes que chegam, ainda esfregam as patas dianteiras, sentados sobre as traseiras, como que se deliciando pelos banquetes da madrugada, quando são donos absolutos do centro da cidade. Bias Fortes e Augusto de Lima distribuem os trabalhadores cidade acima, cada um interrompe a palavra cruzada, o crochê, a conversa com a vizinha, as instruções para o filho que não viu acordar, a leitura da edição do Super com a musa e os gols da rodada, para descer no andar correspondente, onde, a despeito de deixar para trás Carijós, Tamoiós, Guajajaras, Tupis, são as ruas com nomes compostos de figurões políticos de alguma era que são mais arborizadas e que os levarão às torres da aristocracia, para preparar o desjejum de uma outra cidade que ainda, e talvez nunca, acordou.

Comecei a acessar a cidade que acorda cedo aos onze anos, vindo de Ibirité, um município incrustado nos pés da Serra do Rola Moça, como um bloco de minério de ferro rolado lá de cima por acaso e que acabou ficando por ninguém se preocupar em tirá-lo dali, ou por não ter teor suficiente para exploração da miséria ferrosa. Foi juntando gente em volta e a cidade se fez Ibirité só na década de 60, primeiro chamada Vargem da Pantana era um povoado do final do século XIX, formado por cinco famílias, duas das quais mandam na cidade até hoje, Diniz e Pinheiro. Felizmente, permitiram a mudança do nome: Ibirité, do tupi, “chão duro, terra firme”, trouxe uma solidez aparente para uma antiga roça com nome parecido com brejo, que só nasceu para ser horta na política de sesmarias por concessão do imperador Pedro I. Fato é que Ibirité até hoje tem é isso, hortas e oligarquias, exporta hortaliças ou braços para alimentar a metrópole antes que ela acorde e passe pelo pavor de ver suas privadas sujas.

Quando meu pai me levou pela primeira vez, cheguei na Olegário Maciel ainda mareada pela náusea do balaio que ainda me adoecia pois não tinha o couro tratado em navegar pelas largas avenidas. Conheci elevador, ônibus, e aqueles olhos que nos olham de cima, como se espécimes mesmo de uma tribo distante acusada pelo tal ‘pé vermelho’, encardido da rua sem asfalto. Pouco depois precisei aprender a ir sozinha e, aos poucos, a me mimetizar naquele caleidoscópio de ruas infestadas de gente que, como eu, não era dali. A sacola do Supermercado BH no pé antes do primeiro ônibus do dia era o meu truque para evitar a marca da besta no tênis e chegar no colégio — nome que aprendi na zona sul do que até então chamava de escola — e não ser imediatamente reconhecida como proveniente daquele êxodo urbano diário. Mal sabia que sujo ou limpo, era o próprio tênis que não poderia ser dali.

Finalmente avancei os limites dos bairros que nos recebem, os metropolitanos, e conheci outros territórios. Deixei o Barro Preto, o Santo Agostinho e o Centro para trás e rumei acima e avante para o Funcionários, Santo Antônio e, finalmente, Savassi. Entrei pela porta da frente do Colégio, mas me parecia muito mais com quem entrava pela porta dos fundos. Conheci um novo mundo e com ele um novo vocabulário. Granola? Nunca tinha ouvido falar. Agasalho? Ah tá, é a blusa de frio, cumprimentar com beijos na bochecha? Que seja. E aos poucos meus pés pequenos, calçados no all star doado pela ONG no fim do ano, foram passeando pelos corredores daquele inferno de Dante, onde heróis e heroínas começavam a traçar seu caminho de sucesso até a Forbes antes dos 30. Meu tênis, ainda que livre da poeira vermelha que ficou pelo caminho na sacola do BH, carregava ainda alguma gota de urina de rato ou a fuligem do ônibus e do asfalto da distante Avenida Amazonas.

Tocado o sinal do final da aula, os colegas, palavras que também aprendi por lá, entravam nos seus devidos carros ou iam a pé para suas casas perto dali e eu rumava com a minha mochila, minha cruz pesada, descendo para o calvário do retorno. Um pouco mais velha, por vezes descia direto para a Olegário Maciel à pé, observando nesse retorno, como o cenário mudava de avenidas arborizadas e lojas com ar condicionado e portas de vidro, para os anunciantes do centro gritando entre um preço de um sapato e o valor de uma panela, uma piadinha para alguma morena conhecida que passava com sorriso de rabo de olho, rumo a algum edifício vizinho. Malandros vendiam truques na praça, golpistas, vendedores de ouro, foto 3x4, e toda a rapazeada que habitava o quarteirão fechado da Praça 7, onde volta e meia algum bêbado perambulava aos tropeços ou algum profeta anunciava a volta de Jesus Cristo. Perto do almoço e ainda muito longe de casa, quando sobrava um trocado e não era dia de almoçar no “colégio”, parava em alguma lanchonete perto do ponto final do ônibus de Ibirité e pedia um salgado que jazia tranquilo na estufa desde o início do dia e uma vitamina de abacate ou açaí, que a tia me agraciava com o caprichoso “chorinho”.

Algum ou muito tempo depois lá apontava ele, rubro, carmim, trazendo na fronte a cor vermelha que nos distinguia dos demais, assim chamados belorizontinos. O vermelhão cruzando as ruas das tribos, como a marcha do progresso pela Avenida Olegário Maciel, no seu caminho de volta por dentro da Amazonas, a essa hora ainda vazio onde alguma senhora dormia as horas que não dormiu de manhã até chegar para encarar as tarefas de casa no segundo tempo, ou algum baleiro vendia alguma coisa a 3 por 5 e, com o troco do lanche, eu ainda podia comprar uma paçoquinha, banquete completo. Nessas horas, em que voltava sentada, buscava no banco da frente palavras escritas com canetas permanentes, seja na tipografia do pixo, da ofensa, ou do amor, nas iniciais de desconhecidos apaixonados residia um certo lirismo intangível das mensagens abandonadas, como mapas do tesouro nas garrafas mostrando ao mundo que, em algum canto desse mosaico de metrópoles e regiões metropolitanas J. & R. viviam o “amor eterno”, numa espécie de Romeu e Julieta moderno, dividindo o chorinho da vitamina ou a sombrinha no ponto de ônibus.

Apesar de subtraídos da própria individualidade pela migração diária, nós também sabemos amar, sob os bancos dos ônibus nossas canelas que não conhecem a doçura aveludada dos cremes L’Occitane, riscadas pelo se arrastar e se arranhar pelos ônibus e baixos-centros, subindo e descendo elevadores de serviço, também se encostam umas na outras, dividimos um choquito, uma cerveja barata, um espetinho. Também sentimos frio na barriga esperando aquela pessoa subir no ponto de ônibus esperado. Muita vida acontece dentro do vermelhão, intrigas, fofocas, romances, desabafos. O divã de tantos lugares onde encostamos nossa cabeça e sonhamos com a cama abandonada bem antes do Sol nascer. Foram dez anos nessa epopeia diária e a lição da malandragem da rua, do burburinho do centro, da falazada, da correria, é saber chegar para poder sair, a sorte é ser só mais um na multidão, qualquer alarde ali é problema. Meu ônibus mudou de número três vezes, paguei com vale de papel e cartão, até que fui eu quem (me) mudei.

Dezessete anos depois de começar a jornada homérica intermunicipal, cá estou no lugar que menos me pertencia na história, meu endereço, o paradoxo da minha própria jornada, é na Savassi. Caminho por aqui de chinelos pela primeira vez, sem o cuidado de uma sacola para não carregar poeira para dentro do shopping. Vou a pé para o trabalho e raramente avisto algum rato, e, se vejo, correm desesperados rumo ao bueiro mais próximo, também não pertencem àquele CEP. Quando acordo antes do Sol é para ir correr e avisto os rostos metropolitanos com seus traços e cansaços chegando para preparar a alvorada da cidade que acorda tarde, eles me olham com o semblante de baixo para cima, somos espécies estranhas. A essa altura já estão silenciosos e dispersos, perderam o ruído de grupo que lhes é comum no sapateado do Centro. Vão calados e desconfiados pelos cantos das calçadas dessa terra estrangeira.

No fim de semana, se me sento em algum estabelecimento decorado em tons pastéis e que não possuem estufa, nem salgados, típicos dessa região, onde amigas do Colégio se encontram, e peço um cappuccino com algum pão com nome francês sem parecer uma apátrida, e alguém me chama de senhora com a polidez da distância, olho discretamente para seus olhos e para seus pés, olho ao redor e vejo toda aquela mesma gente que é sustentada por esses braços, tento encontrar algum traço vermelho no sapato, como alguma grafia secreta de uma tribo distante, um sinal de fumaça de que não estou sozinha, de que é outro guerreiro desbravador da Amazonas. Mas ele já foi embora para outra mesa, onde alguém com as roupas da moda conta que passou a noite passada em algum bloco de carnaval e que está é a verdadeira festa do povo, provavelmente proprietários do estabelecimento. O atendente aguarda desatento o término da ode à festa popular para tirar o pedido e seguir seu trabalho, até tocar o sinal que o permita marchar de volta Amazonas adentro, no vermelhão, para aproveitar o resto do domingo. Peço a conta e pago, para mim não há mais pátria possível, no visor aparece o sobrenome de alguém que era do Colégio, que pelo seu próprio mérito vai receber 30 reais pelo pão e sair semana que vem na Forbes antes dos 30.

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Michele Flores

Nasci em contagem, 1994, mas queria que fosse uma cidade com vista para o mar. Estou geóloga, formada pela UFMG. Escritora em (eterna) formação.