Teste

Michele Flores
11 min readJun 9, 2021

Quando estou ansiosa, eu gosto de olhar para as minhas mãos. Como sou canhota, minhas unhas da mão esquerda são menores que as da mão direita. As da mão esquerda quebram rápido, na verdade começam a lascar e eu vou puxando até não ter mais jeito, pois agarra no cabelo, nas cobertas, incomoda. Há mais de um ano não faço as unhas, tudo isso ficou obsoleto. Porém agora, nesse instante em que as observo repleta de ansiedade, gostaria muito que elas estivessem feitas e pintadas de vermelho, pois talvez esse seja o último momento em que consiga olhar para alguma parte do meu corpo e me sentir uma mulher desejável.

Nas minhas mãos o papel dobrado em três partes, não há um envelope com letras douradas, não há um preparo para a notícia. Ninguém está segurando a minha mão, estou confortavelmente sozinha, as maiores dores e alegrias eu as recebo sempre nessa solidão abissal. Com as pontas dos meus dedos sem as unhas feitas, percorro a folha antes de abrir, para sentir a sua textura, tem uma gramatura cuja espessura é grossa, agradável. Muitas vezes eu comecei a ler um livro pela gramatura da página, eu fingia que era alguma questão relacionada à autora ou ao autor em questão, mas na verdade era a textura grossa da página. Não suporto páginas muito finas, pois me lembram que minhas mãos não são finas, meus dedos são de pele grossa e são gordos, não são como aquelas modelos de mãos, em fotos de joalherias, sempre dedos longos e finos, onde se depositam, como pássaros calmos, lindos anéis.

No meu caso, sempre pensei que não se depositaria no meu dedo um lindo anel de brilhantes, por não ter aquela forma agradável a uma foto, como não penso que receberei esse anel agora, mesmo com o resultado positivo escrito no papel. Foi a primeira palavra que li, todas as outras saíram de foco como um efeito fotográfico, e lá no fundo, em caixa alta, POSITIVO. Não vou receber anel algum, não vou tirar uma foto da minha mão de dedos gordos e sem as unhas feitas ostentando um anel, esfregando na cara de todas as outras pessoas que estão condenadas a não viverem o conto da princesa que elas não receberão um anel.

“Eu ia ficar muito triste.”

Foi o que você disse quando eu perguntei o que acharia se eu engravidasse por acidente.

“Nossa João, não era bem o que eu esperava ouvir.” Eu só pensei.

Eu não estava nem perto disso naquele dia, estávamos perto da praia, fora do país, era um dia bom de feriado, os raros dias bons que vivemos. Perguntei para ter certeza se eu deveria estar com você, como se a pergunta fosse uma provação divina, como quando nos perguntamos: Deus, me dá um sinal! Aí o sinal vem, mas como não era o sinal esperado, aguardamos o próximo. Eu aguardei. Se Deus vê, se lhe é permitida essa faculdade da visão da nossa insignificância, ele deve estar rindo de mim. Se bem que pensar nessas faculdades de ver, de rir e da cronologia dos fatos quando se pensa em Deus não faz o menor sentido, e ainda me deixa com dor de cabeça. Ou será isso um sinal dessa gravidez?

A partir de agora, tudo é sinal da gravidez. Eu sou a gravidez. Sempre achei que se trouxesse um filho no ventre deixaria de ser uma mulher para virar mãe. As mães não podem ser desejadas. Mas que diferença isso faz? Eu engravidei não porque você me desejou. Engravidei apenas em uma das poucas vezes em que você se aliviou em mim. Eu já era mãe antes desse filho chegar. Eu era sua mãe, mas insistia em lutar para ser sua mulher. A sua mulher era sempre outra. Não que creio que você tenha conseguido transar com outra, por incompetência sua, mas a mulher que você desejava era sempre outra, sempre outra, sempre outra. Uma vez eu chorei por isso, outra vez eu chorei também. Aí um dia eu parei de chorar, simplesmente, não sentia ódio nem amor por você. Sentia um afeto inominável, algo entre pena e medo da solidão que foi me fazendo ficar. Eu tinha medo de te deixar sozinho e você não conseguir perceber, como uma criança, que não conseguiria atravessar a rua, ou se banhar. E permanecesse naquele estado sujo e estagnado inicial em que te achei.

Apesar das minhas palavras soarem duras, a verdade é que não falo isso como uma mãe que repreende o comportamento do seu filho. Não falo com sentimento algum. Afinal, agora eu tenho um filho de verdade no meu ventre. E o mundo inteiro vai me olhar como mãe. Será que meus quadris já estão largos? Será que aquele suposto enjoo, uma semana antes, era sintoma prévio dessa gravidez ou só o nojo que me causava a ideia de ser vista como mãe? Será por isso que não consegui fazer nada essa semana. Pensei que fosse apenas aquela ansiedade paralisante que me toma os músculos com uma certa frequência.

Como vou te contar? A gente não conversa quase nada, falta um léxico comum para encadear todas essas palavras. No dia marcado nos vemos, nunca em um dia fora dele, nunca há surpresa, existe uma previsibilidade do que vem de você, na verdade, muito mais do que não vem de você. Nossa relação é uma tranquila sucessão de negativas. Eu não tenho remorso sobre isso hoje em dia. Me sinto calma, porque sempre vem tão pouco da gente, que o meu termômetro de surpresa quebrou e agora só sigo a vida com a precisão cirúrgica dos fatos.

Eu não vou te ligar, vou seguir o curso normal dos dias, e no dia protocolar da gente se encontrar, para cumprir o rito que diz que nos relacionamos, vou te encontrar. Vamos conversar aquelas primeiras palavras também ritualísticas, mostrando o quanto uma mulher verbal como eu consegue se adaptar ao livro que está lendo que é você. Eu te leio e me adapto aos longos vazios e às longas pausas. Eu não vou criar um clima, acho que vou usar sua ferramenta e não vou dizer nada. Vou deixar o papel em cima do seu celular quando estiver desavisado, pois o seu celular, diferente dos meus olhos, você olha muitas vezes por dia. Seus olhos azuis refletindo as letras na íris como hieróglifos.

Vou aguardar em um canto, como um caçador que arma a arapuca e fica esperando aquele pássaro pequeno e desproporcional que é o inhambu cutucar o graveto de um modo desajeitado e de repente se ver preso naquela armadilha de bambu. Se você não jogar o papel de lado, sei que vai desdobrá-lo sem cuidado algum em observar sua gramatura. Você não percebe nada além do necessário para a sua sobrevivência. Você vai abrir e não é a palavra POSITIVO que vai saltar aos seus olhos, você vai ler desde o começo. Quando entender, você vai me olhar com a testa enrugada, como quando eu soube que você não me desejava e você sentiu coisas entre ódio, tristeza e medo, que na verdade você só expressava como ódio, por não ser alfabetizado em outros sentimentos.

Você vai me olhar e no instante seguinte vai dizer com os olhos apenas que queria que eu abortasse e nos esquecêssemos disso. Mas você não vai se lembrar que naquela mesma praia, em um dia que era bom, eu disse que jamais abortaria, jamais! E não vou abortar agora.

A partir daí tudo vai mudar. Nossa relação baseada nessa indecisão mútua em que vamos delegando um ao outro a decisão de permanecer vai ser substituída pela certeza dura e sólida no meu peito, a de que, ou você vai ser o o pai do meu filho ou não vai. E será assim, ou vamos morar juntos e dividir as melhores e piores partes do que está por vir, ou você vai desaparecer da minha vida. E todas as pessoas que nos amam vão ficar muito tristes. Não me importo com nenhuma delas agora, apenas me importo com você. O que me causa um ódio precoce, pois estou novamente criando todos os cenários possíveis para você na minha cabeça, quando me ocorre que você deveria, antes de tudo, estar aqui segurando a minha mão. Mas eu me acostumei a não incomodar. Deve ser esse o conhecimento transmitido pelo DNA mitocondrial de geração em geração: não incomodar um homem.

Eu não posso sentir ódio, penso na minha mãe tão feliz que sua íris vai dilatar para 1,75 vezes do tamanho original. Eu sempre pensei que quando engravidasse era proibido sentir ódio, do mesmo modo que era proibido fumar ou beber. Eu deveria ter bebido uma última taça de vinho ontem e ter odiado o máximo que conseguia. Odiado tudo que me trouxe para esse lugar, em que não era suficiente, em que não me bastava. Agora não posso mais. Filho, ou filha, eu te amo. Esse sentimento é bruto e desde já eu te peço desculpas. Mas eu não amo seu pai, se é que haverá “seu pai”.

Não há uma única foto da minha mãe grávida de mim. Muita informação pode ser extraída disso, mas não agora. O fato é que isso só me ocorreu agora nesse exato momento. Não há uma única foto. De onde ela veio não havia tempo nem dinheiro para isso. De repente, faz sentido na minha cabeça porque eu não tenho uma foto com um anel para ostentar, é porque venho de uma linhagem de mulheres que em nenhum momento lhes foi permitido acreditar que seriam princesas. Elas não gostam ou deixam de gostar da ideia. São simplesmente alheias a ela. Como os povos originários eram alheios às caravelas portuguesas ou aos galeões espanhóis, e aquilo poderia ser simplesmente um Deus chegando para trazer bênçãos ou um demônio para destruir tudo. Ou, a pior das hipóteses, nem conseguiam enxergar, pois era tão diferente que nem conseguiam conceber o conceito para que conseguissem ver.

O meu dedo mindinho tem um risco de caneta, eu sei que é um risco de ontem porque só ontem usei a caneta lilás. Então significa que me banhei hoje cedo, me vesti, realizei todo o trajeto até aqui sem perceber o risco, sem limpar, isso me enche de tristeza. Já se passou uma hora, pois eu tomei o cuidado de olhar o horário no início da crise de ansiedade, como se fosse uma âncora que me permitisse me segurar quando a tempestade passasse.

Estou desmoronando há tanto tempo. Não percebi que minha mão estava suja de caneta, porque não percebi minha mão, não percebi meu braço, não percebi meus seios. Não me percebo há tanto tempo que tenho medo de olhar no espelho e minha imagem estar levemente transparente, como quando eu aplico aquelas transparências em uma imagem para enxergar melhor as camadas que estão por baixo. O que me assusta é que talvez, no meu caso, não haja nenhuma camada por baixo.

Estou desmoronando e vou ser mãe. O que é um paradoxo, pois todos sabem, todas me ensinaram, que as mães não podem nunca, jamais, desmoronar. Já faz mais de uma hora que estou pensando nisso e não chego a lugar algum, não saio de lugar algum. Vou criar uma versão alternativa para o meu filho ou para minha filha se ela sobreviver o tempo necessário no meu útero. Sempre achei que o meu útero era estragado, fiz exames ginecológicos várias vezes apenas pela ansiedade de ter algo que eu não sabia. Agora tem algo, mas eu sei. Como assim? Tem algo que não vai sair no próximo mês. Será que a parede da menstruação passada foi reaproveitada para a sua cama, não me lembro como funciona, lembro daqueles gráficos no ensino médio de estrógeno e progesterona, palavras agora soltas: luteinizante, folículo-estimulante, pareciam coisas inexistentes, decoradas para conseguir notas em provas que foram todas para o lixo.

Nenhuma das minhas primas que engravidaram concluíram o ensino médio. Talvez elas me odeiem um pouco menos quando souberem que eu, a única infalível, também caí. Porque engravidar é como perder o jogo de onde a gente vem, todos te olham assim: “ah lá, mais uma que acabou com a própria vida.” Ninguém pergunta pelo pai.

Eu não te amo, seria tudo tão mais fácil se eu te amasse, ou tão mais difícil. Seria mais fácil se você também me amasse. Apesar disso dizemos formalmente “eu te amo” algumas vezes, pois precisávamos acreditar, ao dizer, que aquilo existia. Como quando contamos histórias de papai-noel para crianças e elas acreditam, mesmo sem nunca terem visto um.

Eu queria te ligar e dizer assim:

“Oi João, o que você tá fazendo? Vem pra cá agora, tenho uma notícia pra te dar!!!”

Assim mesmo, cheio de pontos de exclamação, como casais assustadoramente apaixonados, que têm certeza do futuro. Eu não tenho certeza nem do passado. Tenho medo da sua cara triste me fazer chorar, pois o choro da mãe faz muito mal para o filho. Eu lembro de ver minha mãe chorar quando o meu pai era horrível com ela. Aí eu me odiava, pois pensava que se eu nunca tivesse nascido, se ela nunca tivesse conhecido meu pai, ela seria muito mais feliz, ou menos triste, isso já seria muito.

No meu sonho, se é que eu tive esse sonho ou projetei agora para digerir melhor a realidade que se impõe, quando eu recebesse essa notícia, quando me desse conta do meu estado de mãe, eu seria tomada por uma grande certeza, que me faria ajeitar meu corpo na cadeira, ficar ereta e assumir essa postura de quem é sólida. Mas continuo encurvada e sinto que minha coluna tem problemas cujos nomes sempre confundo, lordose, escoliose. Mas agora o cronômetro foi disparado, na verdade um temporizador, a cada segundo que passa meu filho fica mais próximo de nascer e mais próximo da morte que acontecerá algum dia. Não posso me dar ao direito de ter uma crise de pânico imaginando que ele morra enquanto eu estiver viva. Meus seios doem.

Onde você está agora, você que não sei se será pai, mas eu certamente serei mãe. Você deve estar olhando o celular, não alguma coisa nossa, nossa conversa, nossa foto, talvez pagando alguma conta, desejando outros corpos na barra de rolagem. Eu sou atropelada pela série de contas que vão surgir a partir de agora e nos sonhos que não vou poder realizar. Na verdade, não houve sonho algum, eu sempre estive a um passo do sonho, aí acontecia alguma tragédia, aquela sensação de: estive tão perto. Eu quase consegui!

Não posso sentir ódio, vou pensar na minha cachorrinha que adorava pegar a bolinha laranja que eu jogava para ela, ela era obcecada em buscar a bolinha, tão obcecada que ficava nesse ciclo de jogar e buscar até suas patinhas sangrarem, e se eu não percebesse e parasse a brincadeira, ela continuava, talvez até quebrar suas patinhas. Como eu, que tantas vezes me levei até a sua presença, me carreguei em busca daquele olhar de desejo, e voltava para casa e voltava para você e voltava para casa, carregando a bolinha sem perceber que eu estava com os pés sangrando, como um Édipo, a quem só resta a tragédia.

Eu sou muito mais que a tragédia e é também nesse momento na minha vida onde não há tragédia alguma. De repente, onde tudo parecia resolvido, é que sinto a tragédia como quando ela nasceu na Grécia. Meu filho também vai nascer. Mas eu só tenho nome se for menina. Preciso decorar que hoje é um dia ensolarado, com poucas nuvens, venta um vento levemente frio e agradável e é de manhã. Preciso decorar, pois vou contar pra ela quando ela tiver idade, de como estava o dia quando eu soube que ela viria.

Eu vou ser uma ótima mãe, mesmo desmoronando. E descobrir isso é como se uma onda de paz repentina atravessava a guerra civil dentro de mim. Como se, de repente, todo o povo palestino tivesse casa, água encanada, escola, e os próximos filhos deles nunca soubessem o que é um míssil. É como se mais ninguém fosse morto injustamente no mundo. É uma paz completa perceber.

É isso, eu entendi, eu vou ser uma ótima mãe, com ou sem pai.

--

--

Michele Flores

Nasci em contagem, 1994, mas queria que fosse uma cidade com vista para o mar. Estou geóloga, formada pela UFMG. Escritora em (eterna) formação.