WALDEN HOJE: QUEM TEM CORAGEM DE FICAR À TOA?

Michele Flores
18 min readAug 9, 2024

E o quanto a criatividade é um ato de desobediência

Em um fim de semana desses, minha mãe me trouxe da roça duas couves-flor, um buquê de alecrim, pimenta-de-cheiro, cebolinha, erva-cidreira, couve e uma sacola de limão-rosa, um queijo e um pote de doce-de-leite. Tirei um tempo do dia para fazer a comida e conversamos ao telefone mais tarde, sobre essa multiplicação da comida que a roça permite. Na minha inocência ou na minha cosmologia limitada de quem, apesar dessas raízes, já está há uma década e meia no universo digital, pontuei para ela que, apesar de ser muito trabalhoso, a roça produz bastante coisa e uma horta alimenta muita gente.

Couve-flor e repolho da horta da minha mãe

Ela, na sua sabedoria da cosmologia de quem nasceu e cresceu no contato com plantação, me disse que não era trabalhoso, o meu pai planta e ela cuida da roça, todo dia vai lá e faz um pouquinho, limpa um mato, agoua as plantas e assim, nessa outra percepção de tempo, a roça vai dando seus frutos.

O tempo e a sua percepção são temas que têm povoado constantemente o meu imaginário. Nos últimos dois anos, os livros que mais me impactaram foram aqueles que refletem sobre o uso do nosso tempo e como a cosmologia em que vivemos nos condiciona a perceber o tempo de uma ou de outra forma. No ano passado foi o livro Walden, ou A vida nos bosques do autor estadunidense, poeta, naturalista, historiador, Henry David Thoreau (trad. Alexandre Barbosa de Souza) e esse ano o livro foi O verdadeiro criador de tudo: como o cérebro humano esculpiu o universo como o conhecemos do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, por quem cultivo profunda admiração, tanto como pesquisador quanto pensador do nosso tempo.

Os dois livros citados que apesar da distância temporal e abordagem distintas refletem muito sobre a natureza humana.

Separados por mais de 150 anos, os dois autores, por vias diferentes, buscaram investigar o quanto o nosso modo de viver no tempo e o que chamamos de viver em sociedade são convenções mentais que podem ser questionadas como quaisquer outras abstrações mentais humanas, como religiões e rituais diversos. Thoreau, um grande crítico da civilização industrial da sua época, decidiu se separar da sociedade em 1845 para viver em uma propriedade ao lado do lago Walden, em Concord, Massachusetts. Por lá viveu por dois anos, onde construiu a própria cabana e plantou o que precisava para se alimentar, durante o processo escreveu a obra onde questiona os conceitos de lazer, trabalho, autossuficiência e do quão o homem industrial daquela época estava desconectado do que chamamos de natureza, esse ente distante e abstrato que um dia foi a nossa única casa. Tanto tempo depois o livro é ainda uma referência na reflexão humanística, do que chamamos “viver em sociedade” e de quais exigências nos são impostas pelo modo de produção vigente e quantas necessidades introjetamos desse sistema que muitas vezes são penduricalhos que buscam justificar o trabalho excessivo e em muito se distanciam das nossas necessidades básicas de sobrevivência.

Memorial com uma réplica da cabana de Thoreau e sua estátua. (foto retirada de: https://pt.wikipedia.org/wiki/Walden#/media/Ficheiro:Replica_of_Thoreau's_cabin_near_Walden_Pond_and_his_statue.jpg)

Thoreau enumerou detalhadamente o que gastou em sementes, machado, e quaisquer demandas iniciais que ele não conseguisse por si só prover e isso era realmente muito pouco em face do que o estilo de vida da sociedade industrial lhe impunha. No cerne das suas necessidades de subsistência estava cultivar suas hortas, providenciar lenha, cozinhar e realizar algum reparo na sua cabana. Tudo isso demandava bem menos tempo do que o trabalho do homem nas cidades estadunidenses ainda que do século XIX. Desse modo, lhe restava muito tempo durante o dia para se dedicar a outras atividades, como ler, observar a transformação do lago Walden durante as estações, meditar sobre as diversas questões do seu experimento de isolamento e escrever, atentar-se aos animais que o visitavam, dentre outras várias possibilidades de alguém cujo tempo não era drenado pelo trabalho. O que pensaria Thoreau vendo o quanto trabalhamos hoje, em 2024, em um modelo que tanto promete prosperidade para a sociedade humana, mas que a cada ano espreme mais o tempo de cada um, como um rolo compressor, e, na contrapartida, oferece muito pouca ou nenhuma dignidade. Ainda assim, cria a cada dia mais necessidades para que cada um possa suprir os vazios dessa decadência sistêmica com produtos ou práticas de “estilo de vida”, de modo que todas as suas relações e o seu modo de estar no mundo são intermediados por dinheiro.

A religião do mercado e do dinheiro é tão eficiente que, mesmo a sociedade vivendo o colapso mental e físico desse modelo de produção, ainda acredita fazer isso pela própria vontade e, pior, julga fracassados aqueles que não seguem esse modelo. Não me esqueço de uma pergunta do meu tio que nasceu e vive na roça desde sempre: “ o que você quer ser quando crescer?” e, diante da minha dúvida em responder, cravou, “quando eu crescer quero ser homem do campo”. E assim o vi desde que nasci, com seu cavalo e algum cachorro de companhia, na sua terra, vivendo a vida nos seus termos. Certamente um fracassado perante os olhos do homem industrial e, hoje, do homem virtual do capitalismo tardio, que paga por tudo com o que se relaciona, desconhece o silêncio e a privacidade e certamente morreria em pouco tempo caso se perdesse numa mata ciliar mínima que fosse. O sucesso desse homem ou dessa mulher só se dá no seu habitat antrópico e artificial, como um pássaro que, nascido em cativeiro, só soubesse cantar na gaiola. Um canto triste, porém, que nem ele mesmo reconhece a tristeza, por não saber a intensidade de um trinca-ferro que canta no meio do mato, uma estrelinha, um pássaro-preto.

O professor Nicolelis, por sua vez, traz com a sua teoria do cérebro relativístico, cujas nuances eu jamais poderia descrever, em se tratando de um autor que é também um pesquisador em neurociência há quase quatro décadas, uma visão de que a nossa cosmologia é totalmente construída pelo nosso cérebro. Toda a nossa concepção de cultura, sociedade, o quanto a física avançou no entendimento do universo e o conceito de tempo, são todos produtos do nosso cérebro e, desse modo, estão condicionadas ao ponto de vista dele mesmo.

Dentre os diversos capítulos e as diversas implicações que isso tem nos vários campos da produção humana, nos capítulos finais o professor traz uma reflexão tão interessante quanto assustadora no efeito da interação do cérebro humano com sistemas digitais na era da internet. Ao contrário dos marketeiros da IA que vendem a possibilidade de se reproduzir o cérebro humano, o professor é taxativo e claro em sua teoria quanto à impossibilidade de que em qualquer momento na história um sistema digital seja capaz de reproduzir ou mesmo captar as nuances desse computador orgânico repleto de informações não computáveis e capaz de mudar seu ponto de vista e configuração a cada momento. No entanto, alerta para o risco inverso, a nossa superexposição aos sistemas virtuais pode tecer um caminho contrário: o nosso cérebro perder suas características intrínsecas e não computáveis que nos trouxeram até aqui e começar a se comportar na lógica binária dos sistemas digitais.

Evidentemente me falta o léxico para me aprofundar na descrição dos aspectos técnicos disso no campo da neurociência, mas a reflexão filosófica que o professor traz e que é mais palpável dessa interação é o quanto somos tribalizados na Internet. Os sistemas virtuais têm uma lógica de recompensa um tanto quanto binária, uma lógica de extremos, ou se é isso ou se é aquilo, ou se concorda com isso, ou se discorda completamente, e isso é o que é recompensado ao cérebro sob a forma dos hormônios de prazer. Na nossa entrada nesse universo de algoritmos de recompensa sem um mínimo de reflexão prévia, nos expusemos a algoritmos nebulosos e com um potencial, nunca antes visto em nossa história, de espalhar o que o professor chama de “vírus informacionais” em tempo recorde. Uma simples postagem de alguém com um amplo poder de alcance pode sincronizar toda uma brainet (conceito de redes cerebrais também construído por Nicolelis) em segundos, e quanto mais isso representar posições extremas, maior alcance isso terá. Talvez por isso não surpreenda o reflexo político disso na ascensão de projetos políticos cada vez mais extremistas e intolerantes pelo mundo .

O professor avalia que estamos numa encruzilhada em nossa história, em que ou retomamos os rumos da nossa interação com esses sistemas e cuidamos dessas características do nosso computador orgânico que nos trouxeram até aqui como criatividade, raciocínio com nuances e, a parte que mais me interessa, linguagem, ou nos entregamos de vez à sina de sermos zumbis digitais ou “babás” de computadores na era da IA. Elas não serão capazes de nos reproduzir mentalmente, mas podemos, nós, terceirizar o nosso raciocínio e a nossa forma de pensar a elas mesmas e nos reduzirmos a um sistema binário que pouco sabe e muito copia. Que é o que sistemas virtuais como a IA fazem, copiam, ela jamais será capaz de criar algo novo, mas sim por meio de sofisticados sistemas de estatística multivariada, reproduzir o que foi alimentado no seu banco de dados, muitas vezes com trabalho precarizado de populações paupérrimas de países do terceiro mundo. Não é, portanto, nem artificial, nem inteligente, como o professor sinaliza. Por outro lado, nós estaremos tão padronizados na lógica binária (se já não estamos), que perderemos nós a nossa criatividade e a capacidade inventiva de tanto delegar a estes sistemas, que vomitam apenas da comida que lhe alimentam, a responsabilidade de “pensar” por nós.

O professor fala muito em uma frase sintética, “um futuro sem futuro”, isso pois ele é totalmente baseado no passado, nos bancos de dados do que outrora foi produzido pelos seres humanos e alimentou esses sistemas, do qual os seres humanos podem se tornar zumbis e deixar de produzir coisas novas, que os sistemas digitais, por sua natureza, não produzem. Isso já se reflete em alguns fenômenos, como monografias e provas com respostas idênticas nas universidades, conduzidos pelo uso dos sistemas de IA como o precursor dessa nova onda, o ChatGPT. O cérebro humano é dotado de tamanha plasticidade, como o professor pontua, que se lhe for imposto que, para receber todas as recompensas do mundo exterior, ele precisa se comportar como um sistema digital, assim ele o fará, em suas palavras,

“uma vez que o mundo exterior recompensa mais aqueles indivíduos que se comportam como máquinas digitais nos empregos, nas escolas e em casa, ou em qualquer tipo de interação humana, o cérebro passa a se adaptar às ‘novas regras do jogo’, mudando de maneira radical a sua forma de operar rotineiramente. Essa reorganização plástica, bem como as mudanças em comportamento humano que ela desencadeia, uma vez mais, seria dirigida pela tentativa do cérebro de maximizar as sensações hedônicas geradas pela liberação de dopamina e de outros neurotransmissores nos circuitos neurais que mediam o nosso senso de prazer”. Nicolelis cita o jornalista Nicholas Carr para pontuar o núcleo desse pensamento, “à medida que passamos a confiar nos computadores para mediar todo o nosso entendimento do mundo, é a nossa inteligência que se reduz àquela gerada pela inteligência artificial”.

A experiência analógica e contemplativa de Henry Thoreau, a Teoria do Cérebro Relativístico de Miguel Nicolelis e o impacto dos sistemas digitais na forma como pensamos e as hortaliças que minha mãe trouxe para mim da roça convergiram na encruzilhada improvável do meu pensamento e da minha reflexão sobre o tempo e a sua percepção ao perceber o quanto é necessário tempo livre para que a criatividade crie linguagem. Trocando em miúdos, é necessário o ócio para escrever e criar, ócio nesse sentido descrito em Thoreau e escasso na era dos sistemas digitais, o ócio da contemplação e da ausência de estímulos e ruídos, seja da sociedade industrial do século XIX, seja da sociedade digital do século XXI. Percebi isso da pior forma, na exaustão mental pelo trabalho, o que significa, na prática, estar sentado diante de uma tela por horas e horas a fio, do nascer até depois do pôr-do-Sol. Ainda assim, em condições muito mais favoráveis do que a maioria dos trabalhadores desse tempo no Brasil e em outras partes do mundo, precarizados em empregos que pagam muito pouco e não lhes garantem o mínimo de segurança social em jornadas exaustivas, que consomem mais da metade de cada dia.

Em todo caso, a minha reflexão me concerne, e a super exposição à tela, à realidade digital e à ausência de experiências no mundo natural, analógico, em muito anularam minha linguagem nesse período, seja escrita, seja falada. O cérebro concentrava todas as suas escassas energias a se adequar ao processamento dessa informação difusa virtual, compilar, tabelar, processar, produzir e todo esse vocabulário da religião Mercado (Financeiro e de Trabalho) que tem padronizado o nosso vocabulário e o nosso modo de estar no mundo e experimentar o tempo. Naquele dia, após semanas sucessivas e quase exclusivas de trabalho, pude me dedicar a outra atividade, cozinhar o que minha mãe me trouxe da roça, fruto do seu trabalho no meio natural para suprir a necessidade básica de se alimentar, e me debruçar sobre esse outro vocabulário, açafrão-da-terra, pimenta-de-cheiro, couve-flor, couve, cebolinha, pimenta, um vocabulário repleto de cores, cheiros e formas, em muito distante das cores monótonas, as formas lineares e previsíveis e a ausência de aromas dos sistemas virtuais.

Algum tempo depois pude visitá-la e nos cinco dias que voaram como o curiango fugindo do chão no amanhecer do dia, vivi e ouvi, na roça, muitas outras formas de existir e estar no mundo. Tanto o homem do mundo industrial de Thoreau, quanto o homem zumbi-virtual do mundo do Deus Mercado de Nicolelis, ambos foram tão bem adestrados em um mundo artificial, nos termos de suas épocas, que se esqueceram de como é ser artífice da própria vida, como é construir a obra que é o seu próprio modo de viver e se colocar no mundo. Entram nos bretes do sistema produtivo sem que seja necessário que lhe aferroem as ancas. Não ligam para os bernes da depressão, ansiedade, barulho e ruídos constantes, dores e raiva crônica, vida estagnada dentro de poucos metros quadrados, desde que no fim do dia lhes sejam ofertados a ração e o sal virtuais, ao berrar no pasto da internet os grandes feitos do dia, uma hora de exercício físico, um jantar mais caro em um lugar de prestígio, um momento em uma festa. Esquecidos das réguas do curral, quase não percebem que estão andando em círculos e que esses pequenos recortes de uma ou duas horas em um dia ou em uma semana, significam viver outras dezenas de horas em um trabalho, em uma cidade, e em um modo de vida que mata mais e mais da sua energia vital a cada dia e limita cada vez mais seus movimentos.

Tentam suprir com dietas, consumo, viagens e outros penduricalhos essa grande ferida aberta sem se dar conta que tratam o sintoma sem tratar a doença, como colocar um curativo em uma bicheira, ao invés de remover ele, o próprio verme. Mas há tanto tempo a bicheira está instalada que curá-la agora dói muito mais do que conviver com a corrosão da carne. Não ousaria jamais trazer com isso uma resposta de como solucionar isso ou dizer que há uma resposta pronta para todos os indivíduos, mas fato é que a sensação desse verme sugando a vida numa grande metrópole se tornou insuportável e comecei a traçar meu caminho de retirada desse universo e da sua cosmologia nas proporções possíveis. Ainda não consigo arrancar todas as bicheiras de uma vez, mas aos poucos vou secando uma ou outra, o que significa nesse primeiro momento “morar longe”, longe de quê? É a pergunta que deveria ser feita. O que há de tão imperdível numa cidade grande hoje? Especulação imobiliária, pessoas passando por cima de pessoas que dormem na rua, barulho e trânsito ininterruptos, preços exorbitantes e pessoas enclausuradas, desconforto como modo de vida, consumo como promessa de conforto, físico e mental.

Entardecer na Serra do Rola Moça avistando a Serra da Moeda, ponto de parada para o café na volta para casa. Minas Gerais, Brasil. Foto de minha autoria.
Amanhecer na Serra do Rola-Moça indo para a cidade. O privilégio de precisar ir apenas dois dias lá e no caminho apreciar essa vista e a mudança da posição do Sol ao longo do ano. Minas Gerais, Brasil. Foto de minha autoria.

O sistema produtivo cria a necessidade e rapidamente cria a indústria para que o consumo a partir dela possa suprir esse vazio. Nessa esteira a indústria do “autocuidado” prolifera como um nicho em ascensão desse tempo para “cuidar de si”, cuidados válidos, mas muito bem ajustados ao modo de vida desse sistema produtivo, algum cuidado com a pele com os cosméticos de uma cartilha, ou com o cabelo segundo uma outra cartilha , ou do corpo segundo uma rotina específica. Tudo isso sombreado por faturas que vão vencer mês que vem, para o pagamento das quais se dedica todo o resto do tempo, afinal, é preciso “pagar os boletos”. Vende-se a doença e o antídoto, como se o ato de cuidar fosse uma rebelião nesse sistema, tirar um “tempo para si”, tempo este que não inferfira, claro, na jornada de trabalho e na rotina e, por vezes, se torna mais uma das incontáveis tarefas a se fazer no dia. A vida como se fosse um eterno check list. Onde muitos se pegam na armadilha de justificar em suas redes (sociais ?) o porquê de não fazer um exercício ou uma rotina de cuidados com a pele, vangloriam-se por trabalhar exaustivamente ou editam a versão da vida que querem mostrar, pois atrás da tela a versão não editada apresenta muito menos brilho.

Passar alguns dias mais perto do mundo natural, não uma pousada ou outra estadia cercada de confortos e penduricalhos, mas a casinha simples e até desprovida de algumas facilidades da minha mãe, na sua terra, física e simbólica, onde cresceu e enterrou os seus, da qual saiu e para a qual voltou, colocou muito do que tenho questionado sobre a forma de estar no mundo em perspectiva. Seja ouvindo as conversas do meu tio que afirmava que trabalhar só era ruim quando era preciso trabalhar, de modo que a sua lida na roça, por não ser obrigatória, nem ordenada por ninguém, não lhe era o labor e o tripalium que seria para os outros, ou na conversa com um pedagogo que se mudou para um sítio com sua família vindo de uma cidade média-grande fazendo o êxodo urbano e me recebendo com a leitura de um poema meu no meio da mata do seu terreno, me vi diante dos questionamentos das formas de se viver e do que se faz com o próprio tempo tão curto e do quanto de desconforto cada escolha implica. E do quanto o conceito do “desconforto” é também uma abstração mental. Morar longe de uma padaria pode ser desconforto para alguém que nunca morou longe de uma, do mesmo modo que não possuir uma horta na própria casa pode ser um desconforto igualmente incômodo para quem sempre teve uma couve, uma cebolinha, uma mandioca, uns pés de cana, plantados no fundo de casa. Tenho pendido para esta última opção, cada vez mais. Cada escolha trará suas consequências, mas as consequências do modo de vida insustentável nas grandes cidades têm aparecido como o demônio do meio-dia com tanta frequência que quase ninguém mais se importa com a sua presença. Como cita Micheliny Verunschk no seu O som do rugido da onça,

“São sempre impressionantes as coisas que as pessoas escolhem para se escandalizar.”

E, em outro trecho sobre essa capacidade de enxergar o mundo ao redor que só quem está conectado a ele consegue ver,

“Só quem está vivo consegue escutar a voz do mundo, entender sua linguagem, seu rumor, os ermos e luminescências de suas palavras, e por estar vivo é que consegue responder.”

À esquerda uma epígrafe do livro “O Som do Rugido da Onça” de Micheliny Verunschk, à direita um pequeno pé de mandioca e meu pai roçando ao fundo em nosso sítio em 2022, zona rural de Crucilândia, Minas gerais, Brasil. Foto de minha autoria.
Meu tio ao lado dos seus imensos Guaimbês-ondulados, 2024, que cresceram e alcançaram essa estatura no quintal de terra, zona rural de Crucilândia, Minas gerais, Brasil. Foto de minha autoria.
Entardecer na roça, 2024, zona rural de Crucilândia, Minas gerais, Brasil. Foto de minha autoria.

É necessário tempo e ócio para criar, para filosofar, e essas atividades já vêm sendo subjugadas há décadas, pelo imperativo da produtividade do modelo de produção desde a revolução industrial. O tempo se cria não só pela ausência de tarefas, mas também pela redução do ruído, tanto o barulho contínuo da cidade grande, quanto o ruído das infinitas mídias e telas que ocupam o olhar e a mente quase o tempo todo. Amanhecer com o silêncio, anoitecer com o céu limpo para reconhecer as constelações e as suas mudanças de posição no céu, observar as mudanças das estações nas árvores e frutos são confortos não quantificáveis pelo dinheiro, talvez por isso tão difíceis de traduzir para uma sociedade de indivíduos adestrados desde cedo segundo essa régua.

Urubu alçando vôo enquanto seu companheiro observa da árvore, zona rural de Crucilândia, Minas gerais, Brasil. Foto de minha autoria.

Como traduzir em valores de dinheiro a descoberta do ciclo de um pé de pêssego que se desfolha completamente e se transmuta numa aparência de árvore morta, para finalmente se cobrir de flores e fornecer frutos tão diversos em tamanho, cor e sabor, bem diferentes dos padronizados pela engenharia genética e produção em larga escala vendidos no supermercado. A sociedade urbana saberá o preço do quilo desse pêssego manipulado, mas não saberá o segredo dessa árvore plantada e cuidada por mãos humanas e pela chuva natural. Isso tudo demora demais frente ao conforto de ir comprar o pêssego “perfeito” no supermercado, mas quando tudo deve ser rápido demais e esteticamente agradável, talvez o produto seja o nosso tempo, vendido e regrado, e a beleza do que consumimos ou publicamos oculta a feiura de não ser dono do próprio tempo e não conhecer os processos naturais dos alimentos que chegam à nossa mesa, ou mesmo as mudanças mais simples do mundo natural, bloqueadas por prédios e asfalto.

O nosso pé de pêssego em sua primeira folhagem em 2016, foto do meu pai.
Minha mãe, nos idos de 2022, no seu pomar chupando uma laranja colhida no pé, plantado por nós, zona rural de Crucilândia, Minas gerais, Brasil, Foto de minha autoria.

Desde criança, caminhar com meu pai na mata é uma aula, ele reconhece um sem número de aves e árvores e é tão familiar a esse meio que não precisa vestir uma armadura para isso, apenas com chinelos ou botina e em mangas de camisa, entra nesse meio sem o medo dos arranhões ou animais, pois está familiarizado a ele e se sente parte dele, a pele do mato se torna uma extensão da sua pele. Algumas vezes, na minha primeira infância, caminhava com ele e tropeçava em alguma irregularidade do terreno, a maioria das vezes ele não me levantava, o que eu achava rude à princípio, mas hoje vejo que me ensinava a me movimentar e me equilibrar sozinha, como no mundo natural os pais deixam seus filhotes caírem para aprenderem a se levantar.

Caminhando com meu pai pelos pastos, alguns anos atrás, em 2022, sempre com a pequena foice caso precisasse desobstruir o caminho, zona rural de Crucilândia, Minas gerais, Brasil. Foto de minha autoria.

Infelizmente, pela imposição da necessidade precisei me retirar dessas atividades para vir ganhar (ou perder) a vida na cidade e não consegui aprender o melhor dessa verdadeira escola que, ainda que tenha adquirido esporadicamente muito mais experiência que muitos dos colegas que conheci na vida urbana, ainda não atingi o ápice da sabedoria do meu pai de se sentir em casa nessa que foi nossa primeira casa. Ele que tão bem compreende esse meio e se vira tão bem nele, construiu a própria casa do chão e constrói um sem número de coisas, mas para o homem industrial ou virtual não possui valor, pois não “estudou” os estudos válidos para este homem e não produz trabalho intelectual sem as mãos, que é o que ele julga mais válidos. No entanto, parafraseando o poeta Edson Cruz, tanto o meu pai quanto minha mãe, cada um foi minha biblioteca, ensinaram-me tudo, nunca saí deles,

“Era analfabeta e deveria / ter se chamado Alexandria.”

Meu pai caminhando com seu bodoque que ele mesmo fez, zona rural de Crucilândia, Minas gerais, Brasil. Foto de minha autoria.
Eu no pé do Jacarandá em uma foto tirada pelo meu pai, zona rural de Crucilândia, Minas gerais, Brasil.

Apesar de isso soar tão estranho ao sistema produtivo hoje, filosofar não implica uma conclusão. É uma atividade que se basta por si mesma. Em uma época tão repleta de certezas e numa cosmologia de produtividade violenta, que povoa o nosso imaginário e encarcera nossos corpos, escrever para elaborar a si e ao mundo parece perda de tempo.

Questione, porém, de onde aprendemos o que é “perder tempo” e o que é “ganhar tempo”, para o quê e para quem guardamos o nosso tempo, para o quê e para quem estamos virtualmente disponíveis o tempo todo. De onde veio o que hoje é chamado de sucesso no meio em que vivemos. Se tudo isso fizer sentido para você hoje, diante dessas perguntas, vivendo numa grande cidade e trabalhando para sustentar um meio de trabalhar, já que a distância entre a produtividade e o salário tem aumentado consideravelmente, pois a prerrogativa do capitalismo tardio é se pautar na especulação em detrimento à recompensa justa ao trabalho e a diminuição das desigualdades, ainda assim se isso faz sentido para você mesmo não sendo parte da micro bolha bilionária que usufrui desse sistema, talvez você esteja feliz e no caminho certo, ou não fazendo as devidas perguntas para si mesmo.

Gráfico do livro “O verdadeiro criador de tudo: como o cérebro humano esculpiu o universo como o conhecemos”, do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis

Caso contrário, caso dê ouvidos ao incômodo, filosofar sobre quem manda no seu próprio tempo pode ser um caminho para agir a respeito disso em algum momento, criar outra forma de vida e de estar no mundo, aprender outro vocabulário além do oferecido pelo algoritmo e pelo sistema de produção e partir em retirada de algumas dessas engrenagens pode fazer muito bem no longo prazo. Nada que for na contramão desse modelo de produção segundo a divindade Dinheiro será fácil e indolor, mas existe muito mais vida e espaço físico e mental fora dos limites do curral.

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Michele Flores

Nasci em contagem, 1994, mas queria que fosse uma cidade com vista para o mar. Estou geóloga, formada pela UFMG. Escritora em (eterna) formação.